A melancolia diz de uma perda?

Melencolia I (B. 74; M., HOLL. 75) *engraving *24 x 18.8 cm *1514

Trabalho apresentado IV Jornada Tubaronense de Psicanálise: Melancolia(s) e suas nomeações (2019).

A melancolia está presente na humanidade desde a antiguidade. Filósofos ocupavam-se em teorizar sobre a natureza humana e classificavam esta dor de existir como um humor natural e não necessariamente patológica. A melancolia era vinculada a um estado poético e de genialidade, à uma tristeza romântica e inquietante acerca do mundo.

Ao longo dos séculos, o conceito de melancolia foi se modificando até a apropriação do termo, no final do século XIX, pelas ciências médicas. Neste momento, a psiquiatria propõe uma descrição do quadro clínico e classifica a melancolia como psicose maníaco-depressiva. Os estados de tristeza e a dor de existir são descritos em termos de uma doença.

O início do século XX é marcado por uma nova maneira de pensar a doença mental. De um lado a psiquiatria com a noção de insuficiência orgânica, deficiência inata e sua clínica descritiva clássica. Do outro a psicanálise, a partir dos escritos de Sigmund Freud, que estabelece uma noção de conflito a partir de uma clínica estrutural, na medida em que o diagnóstico se estabelece na transferência, valorizando a singularidade de cada sujeito. Enquanto a psiquiatria molda a subjetividade para atestar os “catálogos-manuais”, a psicanálise protagoniza o discurso pois compreende que é somente pelas palavras que o desejo pode advir.  

A leitura da melancolia pela psicanálise, possibilitou a construção de uma nova via de se pensar, teorizar e tratar o sujeito melancólico. No entanto, não sem consequências. “O melancólico freudiano perdeu a grandeza que lhe atribuíam os antigos e os românticos” (KEHL, 2011). Cai a dimensão romântica, o que paradoxalmente, possibilita o trabalho de análise.

Mas do que se trata a melancolia? Seria ela um estado de tristeza profundo? Recorrente? Duradouro? Simplesmente um modo de estar no mundo? Uma forma de luto continuado? Para tentar responder a essas questões, irei introduzir o conceito de melancolia contrapondo-o ao conceito de luto, tal como fez Freud.

Segundo o psicanalista (1917), o luto é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja em seu lugar. Tal processo não está necessariamente vinculado à morte, mais a separação ou o abandono de uma “coisa” ou “objeto” da realidade. Por exemplo, um divórcio, a perda de bens materiais ou sentimentais, a saída de um filho de casa, dentre outros.

O trabalho de luto é um processo lento e acredita-se que será superado depois de algum tempo, uma vez que seu estado não é patológico. O período de luto deve ser respeitado e considera-se inadequado e até prejudicial perturbá-lo. O tempo entre a perda e o fim do luto é singular, sendo que cada sujeito processará tal separação à sua maneira.

Após a perda do “objeto amado”, o sujeito enlutado, num primeiro momento, busca permanentemente um reencontro. No início, a existência do objeto perdido é prolongada, até que pouco a pouco, uma a uma, as lembranças e expectativas antes investidas nesse objeto são desligadas. Após o esvaziamento do objeto perdido, a energia antes nele investida pode agora, ser direcionada e reinvestida em um substituto. No entanto, como afirma Maria Rita Kehl (2011), “não existe substituição que nos poupe da perda”. Isso porque, como pontua Lacan no seminário 10, “não estamos de luto senão por alguém de quem podemos dizer: eu era a sua falta” (LACAN, 2005). Estamos de luto por aquilo que de nós foi enterrado com o “morto”.

A respeito do luto, Freud parece não ter dúvidas acerca de seu mecanismo psíquico. No entanto, na melancolia, sua visão conceitual parece imprecisa, tanto no que diz respeito ao seu funcionamento quanto a sua origem.  

Quase cem anos depois da publicação do artigo Luto e Melancolia, escrito por Freud em 1914/15 e publicado em 1917, o tema melancolia ainda é um desafio para nós psicanalistas. Atualmente, o que se tem produzido são esforços teóricos e clínicos para compreender melhor o mecanismo deste estado ou estrutura, tentando, a partir de Freud, ir além de suas conclusões.

Quando comparados, o estado de luto e a melancolia compartilham alguns sintomas, são eles: desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo, perda da capacidade de amar e inibição de toda atividade. No entanto, há um sintoma na melancolia que não é encontrado no luto e a identificação deste no discurso do paciente é fundamental para o trabalho analítico. Há no melancólico um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição.

A melancolia, assim como o luto, é uma reação à perda de um “objeto amado”, mas com algumas peculiaridades. O melancólico não consegue discernir com clareza o que ele perdeu e quando perdeu. Em alguns casos, o sujeito até sabe quem perdeu, mas não o que perdeu nele – a perda é desconhecida, por isso, a falta de clareza que absorve tão profundamente o sujeito melancólico.

Para alguns psicanalistas contemporâneos, a perda melancólica não está relacionada diretamente ao desaparecimento do objeto, mas sim, que o próprio objeto desistiu do melancólico. É, segundo Lambotte (2001), a referência a este objeto encarregado de iniciar o sujeito no campo do desejo e que brutalmente desapareceu. Nesse sentido, a possível constituição do sujeito melancólico encontra-se nos primeiros anos de vida. Na melancolia, a criança não recebeu o embalo acolhedor e agregador de seu objeto de amor e permaneceu sob o abraço do nada (PERES, 2011). Isto é, “o melancólico está no simbólico barrado pelo significante nada, ao mesmo tempo que marca a desaparição do desejo do Outro” (LAMBOTTE, 2001, p. 66).

Quando Freud afirma que na melancolia é o próprio ego do sujeito que se tornou pobre e vazio, é porque, diferentemente do sujeito enlutado, que identifica o objeto perdido e busca deslocar a energia nele antes investida; o melancólico descreve não uma perda de objeto, mas sim, uma perda no estado do ego. O paciente apresenta-se como indigno, incapaz e moralmente desprezível; ele se recrimina, se insulta e espera ser rejeitado e castigado. Humilha-se perante os demais e tem pena dos “seus” por estarem ligados a uma pessoa tão indigna.

Mas por que a tendência do melancólico de comunicar sua suposta inferioridade? E por que parece não se envergonhar das autodepreciações?

Porque para o melancólico, diz Freud (2011/[1917]), “queixar-se é dar queixa” (p. 59). O sujeito queixa-se do Outro em primeira pessoa do singular. Por isso não se envergonha nem se esconde, porque tudo o que diz de depreciativo sobre si, em verdade, é dirigido a um Outro. Eis aí um ponto central na complexa discussão acerca da estrutura ou tipo clínico da melancolia: o lugar do Outro. Segundo Tavares (2009), o melancólico não tem acesso a ficção identificatória e alienante do Outro. Em outras palavras, “o grande Outro aparece como falho, esburacado, incapaz de fornecer respostas ou identificações” (TAVARES, 2009, p. 470).

Nesse sentido, à melancolia parece ser é uma resposta ao vazio especular que impede o sujeito de receber o olhar do Outro como formador do Eu. De acordo com Lambotte (1999), “por falta de um olhar próximo que lhe teria significado seu contorno, a criança pôde, naquele estádio do espelho, nem cair na ilusão da semelhança do duplo, nem assumir a verdade do erro” (p. 34). Assim, ao se deparar com a perda do objeto, o melancólico a transforma numa perda do Eu, numa divisão entre a crítica do eu e o eu modificado por identificação.

Nessa lógica, podemos provisoriamente presumir que o melancólico busca preencher um vazio existencial que diferentemente do luto, não se desenvolve de modo satisfatório a partir da substituição objetal. Isso nos leva a pensar que a melancolia é um estado de luto permanente, já que, segundo Tavares (2009), “a morte do Outro antecede ao sujeito” (p. 481). Esse cenário Faustiano, de solidão e abandono frente às verdades do mundo, produzem, como alternativa à inibição ou ao desespero, um sujeito inventivo, que desde o início de seus dias, busca extrair dos representantes do Outro na cultura, um saber-fazer baseado em sua condição subjetiva.

Talvez por isso o melancólico seja tão frequentemente associado a genialidade, porque busca nas Artes, Ciências, Literatura aporte para se constituir enquanto sujeito e para lidar com os conflitos no laço social. Parece que o discurso melancólico busca uma saída pela palavra, num movimento compensatório frente a fragilidade da formação imaginária. Nesse sentido, a Psicanálise, ao abandonar o paradigma da clínica do olhar (fenomenológica) passando para uma clínica da escuta, oferece ao melancólico uma possibilidade de construir, a partir da associação livre, a sua própria narrativa.  

REFERÊNCIAS

FREUD, S. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 

KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2011.

LACAN, J. O seminário – Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, [1962-63]/2005.

LAMBOTTE, M-C. A deserção do Outro. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 20, 2001. 

LAMBOTTE, M-C. Ésthetique de la mélancolie. Paris: Aubier, 1999.

PERES, U. T. Depressão e Melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.

TAVARES, P. H. Fausto como paradigma da melancolia. Revista Mal-Estar e Subjetividade. Fortaleza, n.2, vol. IX, 2009.